
A Síndrome de Atlas: E se meu mundo cair?
“Eu só sinto cansaço, vivemos em um mundo cansado.”
Esta é uma das afirmações mais presentes na minha clínica atualmente.
Nesta última semana, uma paciente absolutamente exausta por todas as suas funções trouxe o seguinte questionamento: E se eu não fizer tudo o que preciso fazer, quem fará?
Alguém se identifica com esta afirmação?
Pensando nisso, voltei à mitologia grega para, através dos arquétipos, buscar inspiração para lidar com este tipo de sofrimento.
O primeiro que me veio à mente foi Atlas, o Titã que carregava a orbe terrestre sob os ombros.
Atlas, após perder a guerra titânica, foi condenado por Zeus a carregar o céu sobre seus ombros, uma punição eterna que o tornaria símbolo da sobrecarga e do esforço incansável.
Cheguei a alguns textos que o representavam também como símbolo de resiliência, mas neste ponto nós vamos chegar um pouco mais abaixo.
Trazendo para o nosso tempo, o mito pode nos atravessar de maneira inquietante.
Não estamos todos, de alguma forma, carregando o peso do mundo? Ou cada um de nós sobrecarregado com o peso de seu próprio mundo interno?
Byung-Chul Han, no livro A Sociedade do Cansaço, descreve a contemporaneidade como a Era da Exaustão, onde somos empurrados a nos tornar “empresários de nós mesmos”, empreendedores autônomos que acumulam responsabilidades e demandas como se fossem troféus de eficiência e sucesso.
Mas será que esse peso é realmente nosso?
A “Síndrome de Atlas” é um termo não científico, mas amplamente difundido, que descreve o estado de quem se sente responsável por tudo e todos, incapacitando-se assim de delegar ou soltar o fardo. Essa experiência ultrapassa o cansaço físico – ela é emocional e psíquica.
Na psicanálise, o fardo de Atlas pode ser interpretado como a mão pesada do superego, essa instância psíquica que Freud descreveu como a voz interna das nossas exigências morais e sociais, muitas vezes representadas pelas nossas vozes internas, que soam como a voz de nossos pais. Reforçado pelas expectativas culturais, familiares e sociais, nos faz acreditar que não podemos parar, que devemos continuar a sustentar o nosso céu, ainda que isso nos destrua.

Mesmo Atlas sente o peso do mundo. Uma metáfora para os desafios de equilibrar responsabilidades e encontrar resiliência.
Desejo: qual estamos carregando?
Na psicanálise, tanto o prazer quanto a demanda pertencem à ordem do desejo.
O desejo, na psicanálise, é aquilo que nos move, nossa busca por algo que possa preencher uma sensação de falta. Dentro dele, existem duas forças principais: a demanda e o prazer. A demanda é o que fazemos, consciente ou inconscientemente, para atender às expectativas dos outros, como agradar, ser aceito ou cumprir obrigações. Já o prazer é quando atuamos, consciente ou inconscientemente, para atender a anseios pessoais, aquilo que nos faz sentir bem e realizados.
Ambas são desejo, pois apontam o que nos motiva internamente.
Um dos desafios da análise é distinguir o que realmente queremos daquilo que fazemos respondendo ao que esperam de nós.
Muitas vezes, os pesos que carregamos não são nossos, mas sim demandas alheias que introjetamos como nossas. Muitas delas existem mesmo antes de nós! Nos foram dadas por nossas famílias como: o seguidor da linhagem, o salvador, o cuidador ou, mesmo, o grande problema.
A necessidade de ser o filho perfeito, o funcionário exemplar ou o amigo incansável se transforma em um fardo autoimposto, um céu que sustentamos sem questionar.
Em análise, podemos desconstruir essas dinâmicas, identificando o que de fato nos move.
Será que o trabalho que assumimos incansavelmente é fruto de uma paixão ou da tentativa de atender às expectativas de sucesso impostas pela sociedade? Será que a dedicação integral à família reflete um desejo genuíno ou a internalização de papéis tradicionais que não ousamos desafiar?
A perversidade do castigo de Atlas
Na mitologia, Zeus não apenas condena Atlas, mas perpetua sua função de sustentação do cosmos.
Essa perversidade ecoa em nossa sociedade contemporânea. A lógica neoliberal nos convence de que seremos “empreendedores de nós mesmos”, mas, na prática, nos tornamos como Atlas: suportamos os pesos enquanto outros se beneficiam de nossa carga.
Desta forma nos tornando “uberizados”, acreditando em narrativas de liberdade, mas presos em um ciclo perverso de sobrecarga e esgotamento.
Colocar em Atlas a característica de resiliente, no sentido de alguém que aceita o seu destino e dá conta de suas funções, torna-se cruel em dois sentidos importantes:
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Resiliência não é aceitar e aprender a viver com o que se aceitou. Resiliência é a capacidade de lidar com adversidades, superar desafios e se adaptar a mudanças, mantendo ou recuperando o equilíbrio emocional e psicológico. Na prática, ser resiliente não significa evitar ou ignorar dificuldades, mas enfrentá-las de maneira possível e saudável, aprendendo a partir dessas experiências. Resiliência também envolve a capacidade de se reinventar diante de situações difíceis e aceitar a realidade como ela se apresenta, aprender com o momento e buscar mudanças que nos façam voltar ao caminho, mas de maneira transformada.
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Utilizar um símbolo de fardo sobre-humano, onde o peso de carregar todo o céu nos ombros ainda parece menor do que o de enfrentar as questões internas que subjetivamente nos definem, tornando-nos pessoas autônomas (não confundir com independentes), que escolhem aquilo que devem carregar consigo, não importando o que os outros digam.

Quando o peso do mundo parece insustentável, é hora de refletir sobre como equilibrar trabalho, família e saúde mental
O feminino exausto e a sobrecarga invisível
Esse fardo é especialmente evidente no universo feminino. Um estudo da ONG Think Olga, intitulado Esgotadas, revelou que 86% das mulheres brasileiras se sentem sobrecarregadas, e 45% já possuem diagnósticos relacionados à saúde mental, como ansiedade ou depressão.
A sociedade atribui às mulheres um papel duplo ou até triplo: ter uma carreira, ser a cuidadora da casa, e ainda estar emocionalmente disponível para família e amigos. Esse peso não é só simbólico; ele é real, e os números deixam isso claro.
O burnout é 25% maior entre mulheres do que entre homens, reforçando que a carga psíquica de sustentar “o céu” afeta muito mais quem carrega múltiplas responsabilidades.
Vale lembrar que sociedade somos nós. Sim, você que me lê, assim como eu que escrevo. E que mudar ou não esta estrutura também é nossa responsabilidade.
Soltar o céu: uma possibilidade?
No mito, Atlas consegue temporariamente se livrar de seu fardo ao transferir o peso do céu para Hércules. Isso nos convida a refletir: será que também podemos soltar o céu que carregamos?
A psicanálise nos ensina que delegar não é apenas bonito, mas necessário.
É um ato de reconhecimento dos próprios limites, um passo para aliviar o fardo do nosso superego opressor.
Dizer “não” às vezes é o maior ato de amor próprio que podemos realizar! Quando aprendemos a compartilhar dores e responsabilidades, a recusar demandas que não nos pertencem e a priorizar nossos desejos genuínos, é como colocar o céu no chão – não para abandoná-lo, mas para (re)organizá-lo.
Assim, nós chegamos ao conceito do sujeito dividido de Lacan — onde nossa identidade nunca é completa ou unificada, sempre marcada por uma cisão interna. Ela surge quando, ainda bebês, começamos a nos comunicar e somos inseridos na cultura e nas regras sociais. Nesse momento, ainda antes dos 10 meses de idade, perdemos algo essencial de nossa experiência original, criando uma lacuna entre o que somos e o que desejamos ser. Assim, estamos constantemente divididos entre nossas vontades conscientes e os desejos inconscientes, na busca de algo que nunca pode ser plenamente alcançado.
Essa incompletude é o nosso movimento subjetivo, que nos move e alimenta no desejo e nas relações com o mundo e com quem nos cerca.
E entender tudo isso, aceitar e mudar, só com muita análise!

A força feminina sustenta o mundo, mas até Atlas precisa de momentos para restaurar sua energia. Reflexões sobre equilíbrio e autocuidado.
E se eu deixar o céu cair?
Um dos maiores medos de quem vive na “síndrome de Atlas” é que, ao soltar o peso, tudo desabe.
Mas será que isso seria realmente tão ruim?…
Muitas vezes, é no colapso que encontramos a chance de reconstruir. Quando deixamos que as antigas estruturas desmoronem, abrimos espaço para novas possibilidades, mais alinhadas aos nossos desejos e menos carregadas pelas demandas externas.
Atlas, afinal, não precisa ser apenas um símbolo de força e aceitação muda, mas de transformação de sujeitos que têm voz!
Que tal usarmos este mito para questionarmos os pesos que carregamos, para assim nos libertarmos daqueles que não nos pertencem?

Quando tudo desmorona, surge a oportunidade de reconstruir com mais leveza e propósito. A jornada do equilíbrio começa aqui.