
Autonomia, modo e uso
A autonomia é uma questão chave no divã, e como todas as questões chaves da clínica psicanalítica, é desafiadora.
Ouço muito em meus pacientes a busca pela autonomia, muitas vezes sendo confundida com a independência e isso pode realmente ser confuso, pois vivemos em uma sociedade cada vez mais independente para determinadas situações, mas com pouca autonomia na maioria das vezes.
Ser autônomo, é ser adulto, não é apenas tomar decisões ou assumir responsabilidades; é bancar as decisões que tomamos, sejam elas positivas ou negativas.
É reconhecer e afirmar nossa singularidade em meio às complexas interações sociais, culturais e emocionais que nos atravessam.
É pagar a conta! Seja no café puro, com açúcar ou com adoçante!
E nós precisamos falar sobre isso.

Até mesmo de um vaso quebrado, uma árvore pode florescer. Assim é a força do crescimento e da superação.
O que é autonomia?
Autonomia vem do grego autonomos, que significa “ter suas próprias leis”.
Trocando em miúdos, ter autonomia é ser capaz de se autogovernar, tomar decisões conscientes baseadas em valores e desejos pessoais, em vez de simplesmente seguir normas externas.
Embora a autonomia seja frequentemente celebrada e desejada como algo positivo, vista como uma virtude, paradoxalmente, poucas pessoas apreciam ter sujeitos autônomos perto de si, ainda mais quando são afetos importantes.
Se por um lado, valorizamos indivíduos autônomos em campos como ciência, arte e filosofia, pois eles desafiam o status quo e impulsionam o progresso (desde que não sejam nossos subordinados). Por outro lado, pessoas que vivem de forma autônoma em suas escolhas diárias podem enfrentar julgamentos e resistências, especialmente quando suas ações desafiam normas sociais, culturais ou religiosas.
Um estudo realizado pelo Pew Research Center (2019) mostrou que, em países mais individualistas, como Estados Unidos e Reino Unido, a autonomia é valorizada como um pilar de liberdade. Entretanto, mesmo nessas culturas, escolhas que divirjam de normas tradicionais – como não-monogamia, mulheres que não desejam ser mães, homens sustentados por suas parceiras, identidades de gênero não-binárias, ou mesmo pessoas que decidam ter uma vida voltada para a solitude – ainda enfrentam preconceito, estranhamento e exclusão.
Eu realmente me divirto quando escuto o seguinte termo: Autonomia Controlada.
É o paradoxo por si só!
Mas vale a pergunta: Dentro dos moldes sociais em que vivemos, será que existem sujeitos de fato autônomos?
Autonomia se faz deitado, mas no divã!
Para a psicanálise, a autonomia é uma conquista que exige um longo, profundo e entregue trabalho psíquico.
Freud, Ferenczi e Lacan exploraram como somos moldados pelas vontades do Outro (os pais, a cultura, a sociedade) e como nossas escolhas podem ser tentativas infantilizadas de atender às expectativas alheias.
Tornar-se autônomo, no conceito psicanalítico, é libertar-se dessas demandas, sem necessariamente romper com suas representações humanas, reconhecendo assim o que é verdadeiramente nosso desejo e o que é introjetado em nós às vezes mesmo antes de nosso nascimento.
Paul B. Preciado, filósofo e teórico queer, reflete sobre a autonomia como um processo de descolonização do corpo e da mente. Em seu livro Um Apartamento em Urano (2019), ele descreve como a autonomia envolve romper com sistemas de poder que controlam nossas identidades e desejos. Para Preciado, tornar-se autônomo é desafiar estruturas patriarcais, capitalistas e normativas que delimitam quem podemos ser.

Cada encruzilhada é uma oportunidade de escolher o caminho que reflete nossa essência.
Autonomia e Independência: é igual, só que é diferente.
É comum confundir autonomia com independência, eu diria que é até esperado.
Contudo, são conceitos distintos.
A independência implica autossuficiência, a capacidade de viver sem depender de outros. Por exemplo: Pagar os boletos, lavar sua própria roupa, morar sozinho, tomar decisões práticas, ter uma carreira, etc.
Já a autonomia é a habilidade de tomar decisões genuínas mesmo em contextos de interdependência.
Por exemplo: Ter uma carreira que desagrada a família mas que realiza o sujeito profundamente, decidir não comparecer a festa de natal pois familiares que estarão lá causam gatilhos profundos ou fazem lembrar de faltas psíquicas consideráveis, ou assumir gostos e desejos diferentes do que a sociedade espera.
Outras situações: uma pessoa autônoma pode ser financeiramente dependente de seus pais, mas ainda assim fazer escolhas alinhadas com seus próprios valores e desejos. Por outro lado, uma pessoa que ganhe seu próprio dinheiro, pode seguir normas e padrões sem questionar, o que compromete sua autonomia.
De acordo com Richard Ryan, Psicólogo e coautor da Teoria da Autodeterminação, a autonomia é uma necessidade psicológica básica para o bem-estar humano. Sua pesquisa, divulgada em 1975, mostra que pessoas que exercem maior autonomia em suas vidas têm níveis mais altos de satisfação e saúde mental, mesmo em situações de dependência.
Uma maneira de você questionar a sua autonomia de seus pais ou cuidadores é verificar se em algum momento você já pensou ou fez esta afirmação: Se mamãe ou papai estivesse aqui (ou vivos), esta situação (ou minha vida) seria diferente!
Este é um possível pensamento de alguém que ainda não conseguiu desenvolver autonomia de fato.
Essa afirmação pode se estender a parceiros, colegas, amigos, chefes, ou mesmo a deus (para as pessoas que creem) qualquer figura que representa um poder que você acredita que não consegue exercer.

A porta está aberta, e a liberdade é o próximo passo. Voar é uma escolha
Por que resistimos à autonomia?
Tornar-se autônomo é, muitas vezes, visto como uma traição.
Traímos as expectativas dos pais, do Grande Outro (como Lacan descreve a instância simbólica que nos governa), das normas sociais, religiosas e culturais que nos cercam.
Essa resistência não vem apenas de fora, mas também de dentro: ao nos tornarmos autônomos, confrontamos a possibilidade de desagradar aqueles que amamos e com quem temos vínculos profundos.
Além disso, resistimos não só à nossa própria autonomia, mas também à autonomia dos outros. Afinal, se eu não consigo ser autônomo, não vou permitir que outro seja!
Pessoas autônomas podem ser vistas como egoístas, autocentradas ou narcisistas, esta última eu escuto quase semanalmente: “Minha mãe, meu filho, meu marido, minha esposa é narcisista!” Quando na verdade estas pessoas estão simplesmente tocando sua vida sem depender da autorização do reclamante.
Quem não se subordina às demandas alheias se torna em geral alguém inadequado.
É desconfortável conviver com alguém que não precisa de nossa aprovação ou validação para seguir seu caminho. Isso nos lembra de nossos limites auto impostos e de nossa fragilidade psíquica.
E quanto mais autônomo o sujeito, quanto mais desafiador das normas tradicionais, mais frequentemente são considerados ameaças, chegando a reação de massas na sua forma mais radical de exclusão: violência física e aniquilação: morte.
Talvez por isso o Brasil seja o país que mais mata pessoas trans no mundo, enquanto ao mesmo tempo é o que mais acessa conteúdo pornográfico representado por pessoas transgênero.
Em 2023, o país registrou 145 assassinatos de pessoas trans, um aumento de 10,7% em relação ao ano anterior. Este é o 15º ano consecutivo em que o Brasil ocupa essa posição trágica. Paralelamente, dados de plataformas de conteúdo adulto indicam que o Brasil é o maior consumidor de pornografia trans no mundo. Relatórios do Pornhub mostram que, em 2023, as buscas por termos relacionados a pessoas trans aumentam exponencialmente entre os brasileiros, com destaque para o termo “surpresa transgênero”, que teve um crescimento de 490% .
Essa dualidade entre o alto consumo de conteúdo pornográfico trans e a violência extrema contra pessoas trans no Brasil reflete uma complexa relação entre desejo e ódio, evidenciando a inveja inconteste de pessoas que têm força psíquica suficiente para serem autônomas.
Um outro lugar de profundo desconforto social nos fala de autonomia, a morte por suicídio, embora trágico, pode ser entendido como uma busca extrema de autonomia, um grito de “não” à vida como ela é percebida e vivenciada. A não compreensão e muitas vezes o desrespeito por pessoas que tomam esta decisão pode ser conferido em vários ritos sociais: Em algumas religiões pessoas que morreram por suicidio não podem receber ritos públicos de orações (missas por exemplo), em outras as pessoas não podem nem mesmo ser sepultadas junto a seus familiares, precisando ser sepultadas em cemitérios de outras religiões.
Embora a morte por suicidio seja na maioria das vezes uma decisão irrevogável para uma questão temporária, a nossa incompreensão da atitude de alguém que rompe com nossas crenças mais profundas, pode causar emoções e dores internas tão potentes, que nos esquecemos da dor da pessoa que tomou a decisão.
Autonomia, necessidade e Liberdade
Um ponto crucial para compreender a autonomia é reconhecer que ela só pode existir onde não há necessidade.
A necessidade — seja ela financeira, emocional ou social — limita a capacidade de escolha genuína, pois o sujeito agirá impulsionado pela falta, e não pelo desejo.
Na prática, uma pessoa que depende de um emprego para sobreviver ou de um vínculo emocional para se sentir segura pode encontrar dificuldades em exercer sua autonomia, já que suas escolhas estão condicionadas a essas necessidades.
Portanto, a autonomia requer um certo grau de segurança para que a pessoa se sinta livre para tomar decisões baseadas em sua própria vontade, e não apenas em obrigações impostas pelas circunstâncias.
A autonomia não é só festa! Ela também pode ser emocionalmente pesada!
Ao nos tornarmos autônomos, assumimos a responsabilidade por nossas escolhas e ficamos automaticamente sem desculpas que nos permitiam culpar outros por nossas insatisfações. Sabe o: Podia ser a gente, mas você não colabora?
Essa liberdade é desafiadora e ao mesmo tempo, a chave para viver uma vida que realmente faça sentido.
Aceitar a autonomia do outro é tão ou mais desafiador, pois ela nos esfrega na cara nossos próprios desejos e expectativas. No entanto, é nesse espaço construído de respeito e aceitação mútua que podemos vivenciar relações verdadeiramente saudáveis, afetivas e reais, baseadas na liberdade e na reciprocidade.
Para encerrar – e eu espero não ter queimado nenhum fusível em ninguém que me lê, a autonomia é um processo contínuo, não um estado final.
Ela exige que enfrentemos nossas resistências internas e externas, que confrontemos nossas dependências emocionais e que aceitemos a possibilidade de desagradar ou decepcionar, assim como sermos desagradados e decepcionados.
Não é um caminho fácil, é sim possível e profundamente transformador.
Reivindicar nossa autonomia é um ato de ousadia, pessoal e radical – um gesto de liberdade que nos devolve a nós mesmos. Afinal, ser autônomo não significa caminhar sozinho, mas escolher conscientemente o caminho que desejamos trilhar.

No limite do penhasco, encontramos a força para abraçar a liberdade.