Cibridismo, um Superego Extra? Quando Não Há Mais Vida Offline.
A tecnologia digital contemporânea nos traz muitas facilidades e muitos desafios, ao entendermos tecnologia por um sistema de ferramentas que nos permite lidar com algo ou alguma coisa, percebemos que os resultados obtidos sempre refletirão o uso que damos a elas.
Daí nossos desafios!
Hoje quero trazer um termo que vem me chamando muita atenção e curiosidade na minha clínica: O Cibridismo.
O que é o Cibridismo?
Cibridismo é a integração da vida online e offline, um lugar onde as pessoas vivem – um contínuo – que habita entre o mundo físico e digital, criando uma realidade sem fronteiras entre estes espaços.
Assim, a identidade virtual deixa de ser um lugar para interação despreocupada ou até mesmo divertida e descuidada, para se tornar um ambiente que molda aspectos centrais da vida e das relações dos indivíduos.
A reputação digital se torna uma extensão da identidade, e por algumas vezes a identidade desejada como primordial.
Quem nunca procurou um psicanalista, médico ou qualquer outro profissional pelas redes sociais? Quem nunca considerou expandir seu próprio perfil nas redes?
As experiências e os retornos positivos e negativos que as pessoas têm de forma online se fundem e influenciam diretamente na vida offline, causando muitas vezes ansiedade e sofrimento.
Um Superego Extra na tela do seu telefone.
O superego revelado por Freud é aquele “fiscal” interno (por vezes sem aspas) que vive em nossa cabeça, sempre nos apontando o certo ou errado, ele se constrói baseado nas regras que aprendemos. Imagine um juiz de ética pessoal, que atua como a voz de nossos pais, de um professor, um chefe, ou mesmo da sociedade: dizendo o que devemos fazer (ou não!). Ele nos leva a agir de forma socialmente aceita, mas, quando exagera, pode ser bem chato e nos deixar culpados, com medo ou mesmo paralisados.
Na era do cibridismo, o superego encontrou um aliado no espaço online, criando uma espécie de “superego digital” ou “superego extra”.
Este superego online é representado pela vigilância constante dos nossos perfis pelos outros, por suas avaliações, visualizações, curtidas, comentários e, principalmente, pela nossa necessidade de manter uma imagem pública “adequada” e aprovada por uma audiência muitas vezes desconhecida.
A aprovação digital transforma-se em uma meta essencial e, ao mesmo tempo, angustiante, pois cada ação, pensamento e imagem – olha os stories impensados! Cuidado com as lives! – é passível de julgamento de um exército representado por um número de seguidores que se apresenta na rede social de fotos de maneira mais chamativa que o próprio nome do sujeito que a alimenta. Já parou para pensar nisso? Dá uma checadinha rápida no seu perfil e volte para o texto!
Essa pressão adicional de estar sob constante avaliação pública – números de seguidores que sobem ou descem – pode levar a o que podemos chamar de “internalização digital” das normas sociais. Ou seja, as pessoas passam a agir, e sentir de acordo com o que acreditam ser aceito socialmente não apenas em sua vida real, mas principalmente na sua vida digital, onde o julgamento é instantâneo e com o surgimento do print, eterno.
Alguns pacientes trazem para o consultório, a dor do cancelamento sendo tão fortemente sentida, quanto uma possível aniquilação de suas existências:
“-É uma sensação e um medo de morte!”
O Sofrimento Psíquico no Cibridismo
A união entre o superego offline e o superego online pode gerar sofrimentos profundos.
O superego digital atua como uma extensão da consciência moralizada e normatizada, que precisa corresponder a padrões estéticos – de sucesso, de riqueza material e de felicidade – potencializando cobranças internas, resultando em sentimentos de inadequação, ansiedade e medo constante de “falhar” ou “não atingir” aquilo que o sujeito, em sua fantasia, acredita que o pequeno ou grande exército de seguidores espera dele.
A fantasia da vida digital torna-se um peso, uma “marca” que deve ser preservada a qualquer custo, levando à autocensura e à repressão de desejos.
Um paciente descreveu em uma sessão que:
“- A intensidade do sentimento da exposição na rede social é o mesmo que senti quando eu sonhava que estava nú em frente a meus colegas de colégio.”
Quem nunca?
Aqueles que não conseguem manter essa “persona ideal” – ou idealizada – no ambiente online podem sentir-se marginalizados ou insuficientes, uma situação que agrava a dor e a autocobrança, gerando uma espiral de insatisfação e baixa autoestima, junto a um desejo profundo de voltar a cair nas graças dos likes, podendo levar a comportamentos perigosos e destrutivos, como uma adicção.
Em última instância, a fusão entre o offline e o online coloca os indivíduos em um estado de fragilidade e vigilância constante, levando-os a se tornarem prisioneiros de suas próprias fantasias projetadas nas construções digitais e no olhar do outro.
Psicanálise online, muito além do divã.
Ao integrar de forma quase inevitável vidas online e offline, o Cibridismo convida o ser humano a construir um “superego” ampliado, onde a autoimagem e as relações são mediadas por uma reputação digital.
E coitado do Ego neste momento….
Essa condição capitaneada pela fantasia ou o desejo do olhar do outro gera tensão constante, busca desmedida de aprovação – até dancinha a gente faz – e sentimentos de comparação permanente, provocando sofrimento psíquico.
Essa máscara psíquica que chamamos de avatar, aparta o verdadeiro sujeito das interações sociais.
Ao sustentar essa persona, o indivíduo pode experimentar uma desconexão entre o que realmente sente e o que precisa aparentar sentir, o que é ou deseja ser, do que precisa representar ser.
Nossos perfis se constroem como o teatro grego que utilizava máscaras de madeira e couro para representar as personagens de forma fácil para a compreensão da plateia. Porém, ainda assim, o público e os atores sabiam que existia uma mão segurando a máscara e que atrás dela havia todo um corpo, uma pessoa, totalmente distinta do papel.
As questões se formam quando quem atua deixa de perceber este espaço entre a máscara e seu rosto. Essa não distinção entre máscara e eu pode gerar angústia, solidão e até alienação.
Esse processo reforça o sofrimento psíquico, pois a pessoa pode acabar perdendo o contato com suas necessidades e emoções autênticas, tornando-se refém das expectativas da audiência digital e de um “superego” muito mais rígido e punitivo.
A Psicanálise em seu tratamento terapêutico surge como uma luz que ilumina para além das telas.
Através de sessões onde o psicanalista fará o acolhimento das dores e expectativas do indivíduo, alguns pontos poderão ser trabalhados na busca de uma relação mais sadia entre pessoa, perfil digital e telas. Como?
- Reconhecendo as máscaras, ajudando o paciente a reconhecer e entender o conceito da imagem que criou para si e como ela se manifesta em seu comportamento digital. Isto é, explorar as pressões internas e externas que o levam a criar uma persona idealizada e identificar os impactos disso em seu bem-estar emocional.
- Redescobrindo o verdadeiro Eu, provocando o paciente a redescobrir e validar sua verdadeira personalidade. Explorando as necessidades e desejos genuínos que podem estar ocultos ou negligenciados devido à pressão de atender às expectativas digitais.
- Buscando autonomia, reconhecendo e acolhendo as partes de si mesmo que foram suprimidas permitindo, quando possível, uma aproximação gradual entre o que projetou online e o que realmente sente e deseja. Passando assim a expor de forma online, o que realmente realiza o paciente, ou até mesmo reduzindo sua presença nas redes.
- Explorando o Superego Digital, trabalhando com o superego ampliado e punitivo que regula o comportamento digital. A análise pode ajudar o paciente a reconhecer essas imposições e a flexibilizar as exigências internas que respondem às exigências externas, tornando o superego menos rígido e crítico.
- Fortalecendo o Ego, lidando com as pressões sociais online com novas ferramentas e com um ambiente interno mais forte, o paciente pode ser incentivado a desenvolver mecanismos e novas habilidades, onde entenderá que o mundo continua da mesma maneira, mas que ele ou ela (paciente) mudou.
Desta forma passa a se relacionar de maneira mais sadia, com mais amor por si e com mais maturidade, permitindo um posicionamento assertivo em relação ao mundo exterior – seja ele online ou offline – agora com fronteiras bem demarcadas.
Pensamentos Finais
O cibridismo representa uma nova era, onde o superego encontra novas maneiras de agir e impedir que os desejos dos indivíduos se manifestem. Essa nova maneira de existir é uma realidade e não nos é possível escapar dela, mesmo na montanha mais alta.
Portanto é importante entregar-se a um processo de psicanálise, onde através do autoconhecimento, do acolhimento e do desenvolvimento de novas ferramentas, cada indivíduo será capaz de ser a sua melhor versão, diminuindo o espelhamento nas versões dos outros que o cercam e trazendo para o mundo perfis com menos máscaras.