
Esperança ou Esperançar? Quem dança ou faz dançar?
Hoje trago um texto inspirado em dois Mários: O Quintana e o Cortella.
Lá bem no alto do décimo segundo andar do Ano
Vive uma louca chamada Esperança
E ela pensa que quando todas as sirenes
Todas as buzinas
Todos os reco-recos tocarem
Atira-se
E — ó delicioso voo!
Ela será encontrada miraculosamente incólume na calçada,
Outra vez criança…
E em torno dela indagará o povo:
— Como é teu nome, meninazinha de olhos verdes?
E ela lhes dirá
(É preciso dizer-lhes tudo de novo!)
Ela lhes dirá bem devagarinho, para que não esqueçam:
— O meu nome é ES-PE-RAN-ÇA…
Mario Quintana
O que ou quem é a Esperança?
Você já pensou na esperança? Não aquela gentil senhora a que as pessoas costumam se referir como sogras, mas na esperança como sentimento, como desejo, como ato?
A esperança ao longo da história vem sendo apresentada de várias maneiras. Pode ser entendida como um sentimento de confiança ou otimismo em relação ao futuro. Mas, quando olhamos mais de perto, percebemos que ela pode ser algo muito mais profundo e diverso. A esperança pode ser uma crença na possibilidade de transformação, uma força interior que impulsiona a ação, ou até mesmo um estado de resistência frente à adversidade. Não é apenas esperar passivamente; é acreditar e construir um futuro diferente.
O poema pode personificar a esperança como uma figura quase arquetípica, habitando o “décimo segundo andar do Ano” — um lugar na cultura ocidental onde tudo termina, mas também começa. Aquele hiato ansioso de dezembro/janeiro que pode nos encher de culpa pela não realização, ou de gás, pois existem aí doze meses estalando de novos prontinhos para serem usados. Muitas vezes os dois sentimentos se misturam e aí surge o lugar que revela as aspirações e as evitações que cada um de nós leva dentro de si.
Essa “louca chamada Esperança” se apresenta como o inconsciente em sua potência criativa e imprevisível, sugerindo que, mesmo nos momentos mais difíceis, há uma energia psíquica que resiste e busca expressão.
O “delicioso vôo” carrega a potência desafiadora: o ato de se lançar ao vazio para enfrentar o desconhecido que sempre virá! Atirar-se é um movimento de ruptura, que desafia o princípio do futuro presumido ao mesmo tempo que é carregado do desejo de recomeço. A esperança aqui é a força que nos impulsiona a transcender o medo da queda, que pode simbolizar o enfrentamento de traumas ou angústias reprimidas.
Paulo Vanzolini já nos disse isso em sua letra:
Reconhece a queda e não desanima.
Levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima!!!
A Esperança vossa de cada dia, buscai hoje!
Esperança não é sinônimo de esperar.
Paulo Freire, em sua pedagogia libertadora, introduz o conceito de esperançar. E é para essa integração de esperança e esperançar que eu convido você a olhar hoje. Para ele, a esperança não é um ato de espera passiva, mas uma ação transformadora.
Não é sentar e orar para que o conflito acabe, mas sim utilizar a sua força, seja ela qual for, para solucionar o conflito.
Que fique claro, se você acredita no poder da oração, está tudo bem, ore. Mas se ficar só na oração, é a esperança de esperar e não o esperançar do agir.
Esperançar é um processo ativo de lutar por aquilo que se acredita, mesmo quando o cenário parece desfavorável. Assim, esperançar é a ação de se comprometer com o movimento e com a transformação.
Esperar sugere passividade e falta de movimento: “alguém fará algo por mim” ou “o tempo resolverá”. Já o esperançar é um convite à construção: “o que posso fazer agora para que o futuro que EU desejo se torne possível?”.
Eu penso que na poesia a Esperança ser encontrada “miraculosamente incólume” após a queda e “outra vez criança” convida para a ideia de renascimento, refazimento e resiliência. O estado infantil pode ser lido como um momento de regressão criativa, onde para ganhar e crescer com novo impulso, acessamos camadas primordiais de nós mesmos, resgatando a espontaneidade, a pureza e a capacidade de reimaginar a vida como algo cheio de possibilidades.
Assim como em “É preciso dizer-lhes tudo de novo” nos traz a reflexão da dimensão repetitiva do inconsciente. Na psicanálise, a repetição não é apenas uma compulsão; é uma tentativa de elaborar e ressignificar experiências. A esperança, nesse sentido, insiste em se fazer ouvir, repetindo e lembrando que, enquanto os B.Os não forem elaborados, o passado tomará conta do futuro.
Já quando decidimos elaborar, tomamos a caneta e o papel no presente para dizer ao futuro como ele será.
Gonzaguinha nos lembra disso ao dizer que fica com a pureza da resposta da criança e que:
Ah, meu Deus!
Eu sei, eu sei
Que a vida devia ser bem melhor
E será!
Será não porque eu acredito, será porque eu quero, porque eu faço, porque eu construo.
A vida assim como nossa identidade são uma constante reconstrução e renovação do que trazemos dentro de nós.
A Esperança como Motor e não como escudo.
O desejo é o motor do aparelho psíquico. A esperança, como apresentada por Quintana, é o desejo que nunca se extingue, mesmo diante das adversidades. É o elo entre o sofrimento e a busca por novos sentidos que nos mantém em movimento, em um equilíbrio entre a frustração da realidade, que sempre estará presente, e a pulsão de vida.
Na clínica, o poema pode ser lido como uma metáfora para o processo de análise. O décimo segundo andar representa a realização de todo um ciclo que carrega tanto a angústia quanto o desejo, o lugar onde reside a dúvida e o sofrimento, mas também a louca esperança que sabe que existe o próximo passo. O vôo, por sua vez, é a coragem de se submeter à experiência analítica, de revisitar traumas, desejos e fantasias (que vivem nos andares de baixo); só é possível ser analisado se a gente se jogar! O renascimento como criança de olhos verdes (cor da esperança) é o resultado desse processo: o reencontro com uma versão mais genuína e integrada de si mesmo, que comunica ao mundo seu nome – sua existência – de forma pausada, porém firme.
“Esperança e esperançar” celebram a capacidade humana de, mesmo após quedas e desilusões, encontrar dentro a força para recomeçar e agir no fora. Forças dinâmicas que nos impulsionam a criar e a transformar nossa realidade.
Nunca uma espera passiva por tempos melhores, sim uma disposição ativa que motiva a construir o futuro que desejamos. Ao “esperançar”, exercitamos nossa capacidade de sonhar, planejar e agir, enfrentando os desafios com resiliência e criatividade.
Portanto, a esperança deve ser cultivada como uma prática ativa, uma “praxis” que nos leva a questionar, a buscar e a construir ações conscientes e comprometidas, que transformam o indivíduo e a sociedade em que vivemos.
Assim, a esperança não é apenas um sentimento, mas uma pulsão transformadora que nos convida a imprimir nossa própria tinta no desconhecido e a investir em nossa (re)construção.