
Um Tempo Fora do Tempo
O luto cria em nós um tempo fora do tempo. Um espaço de suspensão, onde habitamos uma realidade paralela enquanto o mundo segue seu curso, que nos parece indiferente às nossas perdas. É um estado de transição, de desencaixe, no qual nos sentimos sem contornos e sem referências seguras. Essa ruptura, muitas vezes invisível para os outros, pode ser avassaladora! Quando não encontramos apoio ou reconhecimento para nossa dor, podemos nos perder dentro dela.
A ausência de pertencimento nesse momento torna-se um fator de risco importante. A dor da perda não reconhecida pode levar ao sentimento de isolamento, à angústia e até mesmo ao adoecimento. Compreender essa experiência, suas nuances e possibilidades de ressignificação, é um passo fundamental para integrar a dor sem se perder nela.
Que Fase…
John Bowlby, ao estudar o apego, descreveu o luto como um processo dinâmico e universal, composto por fases que podem variar em ordem, intensidade e duração. Ao contrário do que prega o senso comum, essas fases não ocorrem de maneira linear. Em vez de uma sequência previsível e estatizada, o luto é um movimento complexo, onde emoções podem sesobrepor, recuar e ressurgir sem nenhum avisou ou controle:
Porém, nós humanos sentimos uma necessidade curiosa em colocar as coisas em caixas, ordenadas, para que sintamos ainda que momentaneamente como se estivéssemos no controle, seja do que for.
Assim, vou colocar aqui a organização proposta por Bowlby, lembrando que embora seja interessante conhecê-la, é importante não se apegar a sua cronologia ou esperar que todas elas aconteçam.
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Entorpecimento: Inicialmente, o impacto da perda pode ser tão forte que nos sentimos anestesiados. É como se nossa mente nos protegesse da dor mais intensa, permitindo-nos seguir funcionando temporariamente. Algumas pessoas descrevem essa fase como uma sensação de irrealidade, como se a perda não tivesse realmente acontecido.
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Anseio: Esse é o momento em que, consciente ou inconscientemente, tentamos recuperar o que foi perdido. Sentimos saudade, raiva, desespero e até mesmo negamos a realidade. O desejo de reverter a perda pode ser acompanhado por pensamentos obsessivos sobre a pessoa ou situação ausente.
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Desorganização: Quando a realidade da perda se impõe, pode surgir um profundo sentimento de vazio e desesperança. Nesse momento, podemos sentir que nunca seremos capazes de nos recompor, e a vida parece perder sentido. Essa fase é marcada por tristeza intensa, cansaço emocional e dificuldades em encontrar motivação para seguir adiante.
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Reorganização: Aos poucos, a dor da perda se integra à nossa história. Isso não significa esquecer ou deixar de sentir saudades, mas sim encontrar formas de seguir em frente. O mundo sem aquilo que perdemos se torna mais compreensível, e novas conexões emocionais começam a surgir.
Essas fases se manifestam em ordens diferentes para cada pessoa. Podem sentir desespero antes mesmo do choque inicial passar. Outras podem entrar e sair de fases diferentes ao longo de meses ou anos. É comum vivenciar múltiplas fases ao mesmo tempo ou até mesmo revisitar uma fase que já parecia superada.
Tentar enquadrar o luto em uma progressão rígida pode gerar frustração e sensação de inadequação. O luto pode ser caótico, é subjetivo e único para cada indivíduo, e aceitar essa fluidez é essencial para seu processo de elaboração.
O que Dizia Freud?
Freud, em Luto e Melancolia, diferenciou essas experiências: no luto, há a consciência da perda e um trabalho ativo de desapego, enquanto na melancolia, a dor se volta para dentro, gerando culpa e vazio profundo. O luto permite que a energia propulsora (libido) investida no ente perdido seja gradualmente desfeita, permitindo novas conexões afetivas. Já na melancolia, a perda se internaliza de forma destrutiva, podendo levar à depressão profunda e ao sentimento de aniquilação.
Freud enfatiza que o luto, quando vivido de maneira saudável, é necessário para a reintegração psíquica. No entanto, se o trabalho do luto não pode ser concluído, o indivíduo pode permanecer aprisionado em um estado de dor indefinida, onde a perda se torna parte da identidade.
Por isso a necessidade de em momentos de luto, procurar um profissional da saúde mental que tenha experiência com este momento tão significativo.
Hoje vivemos um tempo em que dores precisam ser suprimidas ou vivenciadas (quando se pode vivenciar), de maneira muito reservada. Há uma corrida desesperada para os consultórios médicos, buscando pílulas que nos integrem de volta ao movimento do mundo. Medicamentos são sim muito importantes, quando por que motivo for, nos encontramos em depressão, por exemplo.
Porém é importante entender que tristeza, luto e até alguma desorganização precisam de cuidado, amor e tempo; não de um remédio que fará parar de pensar ou sentir aquilo.
Dor é inerente ao ser humano, muito embora muitos desejem negar esta realidade.
Análise queridxs, análise!
Luto se Conjuga na Primeira Pessoa do Singular
Gabriela Casselato, minha querida professora e orientadora, tem uma vasta escrita – que recomendo – sobre luto e sua humanização; reforça que o luto não segue um padrão fixo: é singular, subjetivo e profundamente influenciado pela história e pelos vínculos de cada pessoa. Ela apresenta uma forma amorosa de lidar com o luto, onde entre outras questões, propõe:
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Aceitar a realidade da perda – Reconhecer que aquilo ou quem se foi não voltará, por mais doloroso que seja.
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Vivenciar a dor – Permitir-se sentir e expressar as emoções associadas à perda, sem negá-las ou minimizá-las.
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Adaptar-se a um mundo sem a presença do ente querido – Descobrir novas formas de estar no mundo, lidar com mudanças práticas e emocionais.
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Recolocar energia emocional em novas relações e atividades – Não no sentido de substituir o que foi perdido, mas de encontrar novas formas de conexão e significado.
O luto é um movimento interno de reconstrução! Cada pessoa, a seu tempo e à sua maneira, encontra formas de elaborar sua perda e seguir em frente. E tudo bem precisar de ajuda para encontrar a sua maneira.
Eu costumo dizer na minha clínica que: Luto é aprender a colocar o amor em um novo lugar.
Estava aqui! Pra onde foi?
O luto pode retirar nossos contornos, os que acreditávamos existir até o momento, e que tudo seguiria assim daqui por diante.
É o que chamamos de quebra do futuro presumido!
Uma vez ouvi durante um atendimento: “É como se no meio da noite alguém viesse e roubasse meu futuro – o ladrão – é a pessoa que se foi, que eu amo muito, mas também sinto raiva e frustração, culpo ele por este roubo e pela ausência.”
A quebra de um futuro presumido é uma das faces mais angustiantes do luto. Perdemos não só o que amávamos, mas também o que projetamos para o futuro. O que parecia certo é destruído de forma abrupta, gerando um abismo de incerteza.
O luto nos obriga a refazer planos, a reinventar nosso caminho sem aquilo ou aquele que se foi. Esse processo não é imediato, nem linear. Reconstruir-se após uma perda exige tempo, suporte e um esforço ativo para redesenhar um novo horizonte.
Ah! Mas Agora TUDO é Luto!
Essa afirmação ouvi não faz muito tempo, de uma pessoa enlutada e que não se reconhecia como tal.
Ela entendia o luto como algo natural, desde que não muito longo, e que compreendia apenas a experiência que envolvia a morte. Para ela as 4 fases do luto eram lei!
A questão é que ela estava vivenciando um processo de luto complicado, onde a sua própria defesa para não encarar a realidade, é que aquele momento de abandono, não se tratava de luto.
Após um período, trazendo uma visão humanizada e contemporânea do luto, enfatizando a importância de se respeitar em seu tempo e individualidade, além de reforçar a necessidade de suporte emocional e psicanalítico, começamos a trabalhar um conceito importante:
Os lutos não reconhecidos.
Gabriela Casselato, assim como outros especialistas em luto, aborda a questão dos lutos não reconhecidos (ou lutos desautorizados) como uma dimensão negligenciada no processo de elaboração das perdas.
Lutos que não recebem validação social, cultural ou até mesmo familiar, o que pode dificultar ainda mais a experiência de quem está enlutado. Isso pode acontecer porque a perda não é considerada “importante” ou “legítima” o suficiente, ou porque o tipo de vínculo ou relação é minorizado ou estigmatizado socialmente.
Alguns Exemplos:
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Perda de um animal de estimação: Muitas pessoas têm vínculos profundos com seus pets, mas a sociedade frequentemente minimiza essa dor, dizendo coisas como “era só um animal”.
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Fim de um relacionamento não convencional: Relacionamentos extraconjugais, namoros não assumidos ou relacionamentos LGBTQIA+ em contextos não aceitos podem gerar lutos que não são reconhecidos.
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Aborto ou perda gestacional: A perda de um bebê durante a gravidez ou logo após o parto muitas vezes não é vista como uma perda “real” por parte da sociedade, o que pode levar a um luto silenciado e solitário.
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Perda de um ente querido em circunstâncias estigmatizadas: Por exemplo, mortes por suicídio, overdose ou HIV podem ser acompanhadas de julgamentos sociais que invalidam a dor de quem está enlutado.
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Lutos relacionados a mudanças de vida: Aposentadoria, perda de um emprego, mudança de cidade ou fim de um projeto importante também podem gerar lutos.
É importante entender que qualquer realidade que é rompida, onde novas maneiras de viver são necessárias para estruturação, podem gerar o movimento do luto.
Portanto, é importante validar as perdas das pessoas que nos cercam, assim como as nossas, criar espaços de escuta e de presença, onde o acolhimento das dores sem julgamentos, darão espaço – lugar – aos sentimentos da pessoa enlutada.
Tempo da Dor e Tempo da Cura
Não há prazo para o luto. As fases conhecidas podem se sobrepor, podem vir em outra ordem, podem não acontecer. Cada pessoa vive o luto de uma forma própria, e reconhecer essa individualidade é um ato de respeito e compaixão.
Hoje sabemos que podemos ter ao longo da vida em torno de 50 experiências de lutos significativos, o que nos coloca a urgência em termos letramento emocional a respeito deste movimento natural da nossa existência e com isso aprendermos a vivenciar os nossos lutos e criar espaço para quem está à nossa volta, poder fazer o mesmo
Quando estamos próximos de uma pessoa enlutada, a atitude mais importante é oferecer presença e escuta genuína.
Não há palavras que possam aliviar a dor da perda, e tentar minimizar o sofrimento com frases como “está em um lugar melhor” , “o tempo cura tudo” ou “Deus quis assim”, pode soar insensível e criar um sentimento de culpa ou inferioridade em quem escuta. E isso fala mais da nossa dificuldade em presenciar a dor, do que sobre quem está vivenciando o luto.
O mais valioso é permitir que a pessoa expresse seus sentimentos sem julgamentos ou pressões para seguir em frente rapidamente. Pequenos gestos, como perguntar “Como posso te ajudar?” ou simplesmente estar disponível para ouvir e dizer “Eu estou aqui”, fazem uma grande diferença.
Respeitar o tempo do enlutado e validar sua dor são atitudes essenciais para que ele se sinta compreendido e acolhido. Apenas esteja presente!
Além disso, é importante lembrar que o luto não tem um prazo determinado. Muitas vezes, após as primeiras semanas da perda, o suporte ao enlutado diminui porque o mundo ao redor segue seu curso, mas a dor continua presente. Manter o apoio a longo prazo, checando como a pessoa está meses depois, convidando-a para momentos de convívio sem pressioná-la e compreendendo suas mudanças emocionais, são formas importantes de estar ao lado dela.
Respeitar o silêncio quando necessário, mas também oferecer companhia nos momentos em que ela desejar, ajuda a tornar o processo menos solitário.
Afinal, diante desse tempo fora do tempo, o que nos resta é viver essa suspensão, permitir que nossos contornos se refaçam aos poucos. Encontrar uma nova forma de habitar o mundo, agora com a consciência de que o que ou quem estava lá, não está mais. Isso leva tempo e precisa de muito amor!
Seguimos construindo nossas histórias, ressignificando nossas perdas e dando novo sentido ao que temos. Seguimos!
Qual é o seu luto?