
Ódio: uma cola que nos une!
A Isca é a Raiva, Nós os Peixes
Imagine um mundo onde a raiva é moeda de troca.
Um mundo onde a indignação é cultivada, embalada e vendida como um produto digital.
Bem-vindo ao universo do rage bait, ou “isca de raiva”!!! Fenômeno que domina as redes sociais e captura nossa atenção através de conteúdos intencionalmente provocativos.
Mas o que está por trás desse mecanismo que nos faz clicar, compartilhar e engajar em discussões inflamadas?
Quem nunca jogou uma indireta para causar uma treta, que atire a primeira tecla!
Hoje temos algumas pistas para tentar entender – ou não – como o rage bait opera em nossas mentes e corações peludos, revelando não apenas uma dinâmica digital, mas um mercado que lucra muito dinheiro com nossos cliques raivosos, além de uma profunda crise da subjetividade contemporânea.
A Delícia da Sociedade do Espetáculo.
Jacques Lacan, o famoso psicanalista francês, nos ensinou que o sujeito moderno está preso ao gozo (ou jouissance), uma forma de satisfação que vai além do prazer carnal e muitas vezes envolve dor ou desconforto.
Sim, gozamos ao sofrer!
No contexto do rage bait, a raiva se torna uma forma de gozo viciante. Por mais que nos sintamos mal ao consumir conteúdos que nos indignam, retornamos a eles compulsivamente, como se fossemos atraídos por uma força invisível.
Sabe aquela curiosidade nefasta pela qual somos capturados quando um post vem com a indicação: Cuidado! Imagens violentas?! Ou quando vemos alguma referência a coisas que nos causam repulsa ou emoções negativas fortes, mas simplesmente não conseguimos deixar de ver, de clicar, de rever, de repassar.
Essa repetição não é casual; ela reflete uma busca inconsciente por algo que nos preencha, mesmo que esse “algo” seja a própria dor.
A filósofa e estudiosa da psicanálise Alenka Zupančič amplia essa ideia ao discutir como o capitalismo contemporâneo estimula o gozo através da indignação midiática.
Em um mundo onde a atenção é o recurso mais valioso, até o número de piscadas ao olhar para uma tela hoje é monetizado – o rage bait se torna uma ferramenta poderosa para manter os usuários engajados. A raiva, nesse sentido, não é apenas uma emoção passageira, mas um combustível que alimenta a máquina do consumo digital. Assim, nós consumidores de tela, ficamos presos em ciclos de excitação e frustração, onde a raiva se torna uma forma paradoxal de satisfação.
Vale lembrar que o nosso Attention Span, que é o tempo que uma pessoa se concentra em uma tarefa antes de se distrair, vem reduzindo drasticamente! A nossa capacidade de começar e terminar uma tarefa, ou ficar em uma única tela caiu de 2,5 minutos em 2004 para uma média de 47 segundos em 2021, segundo pesquisas. A previsão é que este número caia pela metade até 2027.
Ou seja, como o algoritmo é programado para o lucro, e se o ódio é o que mais chama a atenção, espere cada vez mais tretas e cenas fortes que aumentem o seu suco gástrico de cada dia.
Afinal, o dinheiro precisa continuar a cair na conta dos donos das plataformas digitais.
Atenção!!! Atenção!!! Muito Obrigado pela Atenção!
O rage bait está dinamizado pelas telas, mas já é nosso amigo há muito tempo! Quem nunca disse: Vou parar de assistir a este jogo, a esta novela, nunca mais vou ao almoço de domingo e…
Logo em seguida sintoniza só para saber se o jogo virou e vai para o almoço de domingo rezando para não ter ser alvo de nenhuma conversa que chateia… (mas se a conversa acontecer, já temos assunto no grupo do zap para a semana ,-)
Se o gozo nos mantém presos ao ciclo da raiva, é a economia da atenção que sustenta esse mecanismo.
Bernard Stiegler, foi um filósofo que explorou profundamente a relação entre tecnologia e subjetividade, argumentando que as redes sociais exploram nosso aparelho psíquico para capturar nossa atenção. O rage bait é um exemplo claro disso: conteúdos que geram raiva são mais propensos a viralizar, criando um ciclo vicioso de engajamento. Nossa atenção, transformada em dados, se torna o recurso mais valioso em um mercado que lucra com nossas emoções.
Como vivemos em um estado de hiperestimulação constante. O rage bait funciona como um mecanismo que nos mantém em um estado de excitação permanente, alternando entre a indignação e o esgotamento emocional. Nesse contexto, a raiva não é apenas uma reação, mas uma forma de nos manter conectados a um sistema que nos consome. E assim, o sujeito contemporâneo se vê preso em uma armadilha: quanto mais se indigna, mais se cansa, e quanto mais se cansa, mais busca novas fontes de indignação.
E nós buscamos desenfreadamente! Quem aqui gosta de BBB?
O Big Brother é uma fórmula criada originalmente como experimento científico para estudar o comportamento humano.
Baseado na ideia do panóptico, criado pelo filósofo e jurista Jeremy Bentham no século XVIII, como um modelo de arquitetura para prisões, onde um único vigia poderia observar todos os prisioneiros sem que eles soubessem quando estavam sendo observados. Assim, os presos cientes de um poder supostamente onipresente, internalizariam a vigilância e a disciplina em seu próprio comportamento, diminuindo o custo do controle pelo estado.
Trazendo para nossa discussão da Psicanálise e o Inconsciente, este método pretendia estimular que os indivíduos desenvolvessem um Superego extremamente rígido, nos encarcerados que ainda conseguiriam manter a saúde mental. Naqueles que já tivessem predisposição a transtornos mentais, através dos gatilhos da hipervigilância e ansiedade, criar um adoecimento tamanho que poderia culminar em paranóia, caracterizada pelo medo constante de ser julgado, punido ou exposto.
Muito tempo depois, passando no meio do caminho por Michel Foucault, George Orwell em seu livro 1984 (lançado em 1949) resgata a ideia de um governo – O Grande Irmão – que exercia o controle dentro da casa de todos os cidadãos.
Corta para 1999!!!! O produtor holandês John de Mol, cria o formato popular do programa, que encontra solo fértil no Brasil a partir do início dos anos 2000.
Mas porque raios Gustavo você está nos dizendo isso tudo?
Porque o BBB é um programa baseado em Afetos, e ainda que você nunca tenha assistido ao BBB, se você está vivo, viva e respira, você já sofreu impactos gerados pelo programa.
Afetados Somos Todos.
Na psicanálise, os afetos são as diferentes expressões emocionais que emergem do nosso psiquismo. Freud identificou que os afetos podem ser recalcados, deslocados ou transformados, dependendo dos mecanismos de defesa que apresentamos. Mas para simplificar e sair do Psicanalês, vamos fechar na seguinte ideia:
Afeto é tudo aquilo que nos afeta. E eles podem ser positivos, ou negativos!
Os nossos principais afetos são:
Angústia, Culpa, Vergonha, Ódio, Amor, Tristeza, Alegria, Raiva, Medo e Nojo. Acho que todo mundo gabaritou aqui, pois todos nós sentimos todos os afetos juntos ou separados, por toda a nossa existência.
A fórmula do BBB explora isso como ninguém! A relação entre rage bait e o vício que temos no Big Brother Brasil pode ser compreendida a partir de conceitos psicanalíticos e da dinâmica da economia da atenção. Ambos os fenômenos exploram pulsões inconscientes, emoções primárias e a lógica do engajamento pelo afeto extremo, especialmente o ódio e a indignação.
Na psicanálise lacaniana, a pulsão escópica (o desejo de ver) nos mantém presos a narrativas de exposição, vigilância e espetáculo. O BBB coloca indivíduos sob observação constante, tornando o público não apenas espectadores, mas também juízes e agentes do destino dos participantes. Esse desejo de ver e julgar se intensifica quando há conflito, polarização e rivalidade, elementos que fazem parte da lógica do rage bait.
O rage bait, usado nas redes sociais e pela própria produção do reality, estimula emoções como raiva, indignação e frustração para manter o público engajado. No BBB, isso acontece por meio de edições tendenciosas que estimulam narrativas maniqueístas (vilões vs. mocinhos); provas e dinâmicas que favorecem o conflito e a rivalidade através de rituais de sofrimento físico e psíquico, reações exageradas dos participantes reforçadas pelo discurso digital (memes, tweets, cortes de vídeos virais), convocação da audiência para “justiçar” um participante, seja eliminando ou exaltando a fada sensata ou a pior pessoa.
O rage bait no BBB funciona como um combustível emocional, uma dose de estimulante, nos mantendo atentos à próxima treta, ao próximo embate e ao desenrolar da narrativa.
O que dizer de um jogo onde pessoas são ELIMINADAS – deixam de existir naquela realidade, através de um PAREDÃO – uma clara alusão à morte por fuzilamento???
A raiva pode ser viciante, pois ativa circuitos de recompensa no cérebro. Quanto mais nos indignamos, mais queremos acompanhar, comentar e participar do debate. Isso cria um loop de compulsão: acompanhamos o BBB para ver o que nos irrita, comentamos nas redes sociais, recebemos validação (likes, compartilhamentos) e voltamos para consumir mais. Esse ciclo de indignação e prazer se alinha ao conceito do gozo – um prazer que pode ser destrutivo e exaustivo, mas do qual não conseguimos nos desprender.
Os participantes do BBB servem como projeções do nosso próprio inconsciente. Projetamos neles nossas frustrações, expectativas e até nossas próprias limitações. Assim como o rage bait nas redes sociais nos dá um “alvo” para despejar nossas angústias, o BBB nos dá personagens para amar ou odiar intensamente. Isso explica por que há fandoms tão apaixonados e guerras digitais envolvendo o reality.
O rage bait e o vício no BBB operam dentro da mesma lógica: nos mantêm presos em ciclos de emoção extrema, julgamento moral e engajamento compulsivo. Ambos exploram pulsões inconscientes, desejo de pertencimento (e aqui somos nós com nós mesmos) e a necessidade de participação ativa na construção da narrativa.
Estamos aqui falando sobre Rage Bait e BBB, mas também estamos falando de política, dos nossos movimentos nos transportes públicos, da fila do supermercado, do vizinho do apartamento ao lado ou da pessoa que escolhemos para dividir nossa cama.
Além disso, estamos falando sobre nossos afetos mais profundos que projetamos em tudo e todos que nos cercam. A diferença é que nas redes sociais, na política e na televisão, tem alguém lucrando com seu gozo, e esse alguém não é você.
No fim das contas, seguimos assistindo, debatendo e nos indignando porque sentimos prazer na alienação – ainda que nos deixe exaustos.
Fascinação Pelo Colapso.
Freud identificou que a nossa pulsão de morte nos leva a repetir situações de conflito e destruição. Vemos esse mecanismo em ação quando torcemos para que certos participantes de reality, blogueiros, políticos ou pessoas de nossos grupos afetivos falhem, sejam humilhados ou enfrentem grandes embates.
É um microcosmo onde podemos projetar nossos próprios medos, frustrações e impulsos destrutivos sem lidar com as consequências diretas disso. A prática do rage bait nos prende porque queremos ver o desmoronamento.
Quando nos comprometemos a analisar com profundidade as nossas ações, este movimento passa a funcionar como um espelho para nossas próprias questões emocionais e sociais. Passamos a nos dedicar a entender a nossa identificação projetiva do afeto, onde despejamos no outro aspectos reprimidos de nossa própria identidade. Assim, nos tornamos juízes morais, vivendo uma fantasia de superioridade ao criticar qualquer um que não seja nós mesmos.
Afinal, a culpa é minha e eu boto ela em quem eu quiser!
A era digital transformou nossa relação com o entretenimento em uma forma de afirmação do ego, onde nos envolvemos emocionalmente porque enxergamos algo de nós mesmos naqueles que estão na tela. A plasticidade do cérebro, que deveria nos permitir adaptar e evoluir, é agora moldada por uma lógica que nos mantém presos à repetição do sofrimento.
O Outro como Objeto de Raiva Mas não Precisa ser Assim.
A raiva, assim como qualquer afeto negativo quando bem elaborado, pode levar ao amadurecimento emocional. No entanto, quando estimulados sem simbolização – processo pelo qual transformamos experiências, emoções e desejos inconscientes em palavras, imagens ou significados que nos permitem lidar com eles de forma elaborada e menos angustiante – os afetos impedem a construção de um diálogo genuíno. Assim, em vez de nos aproximar do outro, o transformamos em um mero alvo de nossa agressividade.
A tela e a falsa sensação de poder online, nos provoca a destrutividade sem reconhecimento do outro. No ambiente digital, o outro deixa de ser um sujeito com sentimentos e pensamentos complexos e se torna um objeto de projeção da nossa raiva.
O outro não tem matizes e contornos, passa a ser apenas uma coisa. Essa dinâmica não apenas impede o diálogo, mas também reforça a polarização e o conflito criando dor, confusão e ressentimento.
Assim, é comum nos vermos presos em uma armadilha onde a raiva, em vez de ser uma força transformadora, se torna uma barreira para o entendimento mútuo.
Esta realidade é um sintoma do mal-estar estrutural da era digital. Ele descortina a fragilidade psíquica do sujeito contemporâneo, preso em um ciclo de excitação, indignação e esgotamento. Além disso, revela como as redes sociais operam explorando pulsões inconscientes, transformando emoções humanas em capital.
É urgente refletir sobre como podemos lidar com esse fenômeno. Será que podemos transformar a raiva em algo produtivo, ou continuaremos presos nesse ciclo vicioso? A resposta pode estar em uma maior consciência de nossas próprias pulsões e em um esforço coletivo para ressignificar o modo como nos relacionamos com a tecnologia e com o outro. Tudo é ferramenta, então sempre dependerá de quem a manipula. Afinal, a raiva, quando bem elaborada, pode ser uma força transformadora. Mas para isso, precisamos primeiro reconhecer as armadilhas que nos mantêm presos ao ciclo do ódio.
Análise queridxs, análise.