
Quando um rótulo vira moda
Na última semana, conversando com uma grande amiga que é mãe, discutimos sobre o conceito de “mães narcisistas”.
Ela me enviou textos de sua terapeuta que apontavam a possibilidade de sua própria mãe se encaixar nesse perfil. Confesso que conheço a mãe em questão: no universo psicanalítico de Winnicott, ela não foi uma “mãe suficientemente boa”, mas está longe de carregar um diagnóstico de Transtorno de Personalidade Narcisista.
O que chega a nossa clínica hoje é uma tendência preocupante: pessoas que não se sentiram plenamente amadas por suas mães estão rotulando-as como “narcisistas”.
O termo viralizou em redes sociais e livros de autoajuda, mas será que estamos banalizando diagnósticos sérios ou buscando respostas para dores que são absolutamente legítimas?
Diagnóstico em Alta, Realidade em Baixa
É comum receber analisandos que chegam ao consultório com autodiagnósticos de “filhos de mães narcisistas”, munidos de listas de sintomas retirados de livros ou posts online. Vejam, quando eu digo: Sou filho de alguém narcisista, estou falando sobre mim, sobre minha realidade e minha dor. Quando digo: Minha mãe é narcisista, deixo de falar de mim e passo a falar sobre outra pessoa.
A intenção é sempre válida — entender a própria história —, mas o risco é reduzir relações complexas a rótulos simplistas.
Um diagnóstico preciso é crucial para tratamentos eficazes. Condições como depressão ou ansiedade exigem abordagens específicas, e rotular alguém como “narcisista” sem critério pode distorcer a realidade.
Freud alertava: diagnósticos rápidos são mecanismos de defesa (do analista). Classificar a mãe como narcisista pode ser uma forma de evitar confrontar ambivalências (como amor e ódio coexistentes). A análise ajuda o sujeito a reconhecer como internalizou a mãe narcisista ou não e, assim, reescrever sua narrativa.
Melanie Klein complementaria: projetamos nossas partes “más” nos outros para preservar nossa imagem interna. Ao transformar a mãe em “vilã narcisista”, o sujeito se coloca como vítima, ignorando nuances dolorosas.
Partindo do senso comum que – se a culpa é minha, eu coloco em quem eu quiser – faz parte do jogo receber na clínica indivíduos adultos que não tomam para si o lidar com suas dores, faz parte de um bom processo analítico caminhar na direção deste enfrentamento.
Mães Reais: Por Que Fugimos do Concreto?
Na psicanálise, não há espaço para estereótipos. Cada relação mãe-filho é única, tecida por histórias inconscientes, silêncios e gestos. Rotular uma mãe como “narcisista” apaga sua humanidade — falhas, medos e desejos — e transforma-a em um personagem unidimensional.
O que se perde nesse processo? A riqueza da subjetividade de quem está em análise.
A análise busca entender como a figura materna foi internalizada, não julgar seu caráter. Mães reais não são monstros ou santas: são mulheres que, como todos, carregam feridas e limitações. Ao demonizá-las, o sujeito evita confrontar sua própria história — incluindo a dor de amar alguém que o magoou.
Winnicott diria: uma mãe não precisa ser perfeita, apenas “suficientemente boa”. Essa ideia desconstrói a fantasia da maternidade idealizada, abrindo espaço para aceitar que falhas são parte do humano.
Afinal, Ser Mãe É Dar Conta!
Mãe é aquela que não precisa ser impecável, mas presente o bastante para criar um ambiente seguro.
Inicialmente, ela atende às necessidades do bebê com dedicação total; depois, aos poucos, permite pequenas frustrações para que a criança desenvolva autonomia.
Essa mãe não é narcisista — é humana. Ela erra, se cansa, tem desejos fora da maternidade.
A sociedade, porém, cobra perfeição: mães devem ser abnegadas 24 horas por dia. Quando falham, são taxadas de egoístas. Vera Iaconelli, psicanalista e autora de Manifesto Antimaternalista, critica essa dupla moral: pais que priorizam trabalho são “provedores”; mães que fazem o mesmo são “narcisistas”.
Aqui, o problema não é a mãe, mas a cultura que a condena por não ser um arquétipo inatingível.
Papai Foi pra Roça?
Por que não falamos de “pais narcisistas”? A resposta está no machismo estrutural. Mães são julgadas por qualquer desvio do papel de cuidadora; pais, mesmo ausentes, são vistos como algo dentro do padrão.
Um pai autoritário e controlador é “rígido”; uma mãe com o mesmo comportamento é “tóxica”.
Estudos mostram que o Transtorno de Personalidade Narcisista é mais diagnosticado em homens, mas os pais raramente são alvo dessa crítica.
A psicanalista Vera Iaconelli aponta: rotular mães como narcisistas é puni-las por ousarem existir além da maternidade. Enquanto isso, pais escapam do escrutínio — mesmo quando sua negligência é evidente.
A função da parentalidade em qualquer formato que se apresente é: Construir um ambiente seguro onde o indivíduo em formação possa sair, tomar as porradas que são inerentes à vida – desde o jardim de infância – e retornar a este ambiente para se recuperar. Para em seguida sair novamente, até que possa ser responsável pelo seu autocuidado e a construção de seu próprio ambiente.
Tudo o que é cobrado além disso, é construção social romantizada – da Sagrada Família dos livros mitológicos do catolicismo, até a família margarina.
Psicanálise Sem Rótulos
A psicanálise não nega a existência de mães narcisistas, mas recusa simplificações. Para Freud, o narcisismo materno surge quando a mãe vê o filho como extensão de si, não como indivíduo. Lacan acrescentaria: ela o transforma em objeto de seu desejo, anulando sua subjetividade.
A chave sempre estará na análise individual, não no rótulo que ao generalizar, desumaniza.
Como Melanie Klein ensina, o trabalho é integrar as partes “boas” e “más” da relação, em vez de polarizá-las. O objetivo não é culpar a mãe, mas entender como suas falhas ecoam na vida psíquica do paciente.
Estas falhas dos cuidadores originais, ecoam em todos nós. Se foi amor demais, é porque foi demais. Se foi amor de menos, é porque foi de menos. Para crescer nós precisamos simbolizar as nossas faltas, e os nossos cuidadores nos dão acesso a elas sem cobrar a mais por este serviço!
Estatísticas mostram que o Transtorno de Personalidade Narcisista afeta entre 0,5% e 6,2% da população global — números que incluem homens e mulheres a depender da cultura. Ou seja: casos reais existem, mas não justificam a epidemia de diagnósticos nas redes.
Para Além do “Inimigo Narcisista” existe a Liberdade Possível
A moda das “mães narcisistas” reflete um mal-estar: a dificuldade de lidar com relações ambivalentes em um mundo que exige certezas. O movimento da análise nos oferece um caminho mais fértil: substituir rótulos por perguntas.
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Como a história da minha mãe influencia ou influenciou seu comportamento?
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Que partes de mim ainda buscam seu reconhecimento?
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Como construir minha própria estrada e deixar de viver a estrada que foi construída para mim?
Ao enfrentar essas questões, o sujeito não nega a dor, mas recupera o direito à complexidade — da mãe, de si mesmo e do amor que, mesmo imperfeito, pode ser refeito.
Rotular é fácil; analisar é revolucionário!
A psicanálise não promove vilões ou vítimas, e sim convida ao mergulho nas sombras para encontrar luz própria. Afinal, não existe isso de uma criança; existe uma criança e alguém.
Adultos assim como os bebês não existem isoladamente; só podem ser compreendidos dentro das relações.