
Quanto Pesa a sua Consciência?
Hoje o tema é universal: a culpa. Mas não qualquer culpa, e sim aquela pegajosa, insistente, que não desgruda nem com reza brava. Aquela culpa que faz você repassar uma cena trinta vezes na cabeça enquanto tenta dormir, imaginando respostas melhores ou decisões mais inteligentes.
Quem nunca repensou algo que aconteceu por várias vezes, pensando que a melhor solução teria sido esta, ou aquela. Ou que se tivesse dito isso ao invés daquilo, tudo seria diferente? Em geral, um diferente melhor para si mesmo…
Na língua francesa há uma expressão que eu acho que define bem este momento: “l’esprit de l’escalier” (literalmente, “o espírito da escada”). Ela se refere àquela sensação de pensar na resposta ou frase perfeita após o momento da discussão, como quando você já está saindo do local (simbolicamente, “descendo a escada”) e só então se lembra do que deveria ter dito, feito, ou do que se tivesse dito, ou feito, não sentiria a culpa que está sentido agora. O termo foi popularizado pelo filósofo Denis Diderot no século XVIII, em seu ensaio Paradoxe sur le comédien. É muito usado até hoje, para descrever a frustração da impossibilidade de uma réplica tardia, de algo que não deveria ser dito ou de algo que não é possível desfazer. Ou seja, algo que pode gerar culpa.
Então para que nós mantenhamos a discussão sempre no decorrer dos degraus da escada, seja subindo ou descendo, vamos falar da culpa, reparação, como elas interagem, e até se realmente existem.
A Culpa que Não Passa – O Caso de Raskólnikov
Imagine cometer um ato terrível e, em vez de ser pego pela polícia, ser perseguido pela sua própria mente. Pior que o rotativo do cartão de crédito, a consciência de Rodion Raskólnikov não dá um dia de sossego. O cara tinha um plano engenhoso: matar alguém que explorava os pobres, livrar o mundo de um ser desprezível e, de quebra, garantir sua sobrevivência financeira. Simples, direto e, segundo ele, justificado. Mas, depois do crime, algo dá errado, ou certo: A culpa.
Para que todo mundo possa se situar: Crime e Castigo de Fiódor Dostoiévski, é a história de um estudante quebrado e cheio de teorias grandiosas, Rodion Raskólnikov, que decide matar uma idosa agiota convencido de que está prestando um favor à humanidade. Só que, em vez de se tornar um herói iluminado, ele mergulha num colapso mental daqueles, repleto de paranoia, febre e delírios existenciais. No fundo, Dostoiévski não escreveu só um romance policial, mas uma verdadeira sessão de análise com divã acoplado na coluna do sujeito, explorando o que acontece quando alguém tenta enganar a própria consciência – e perde feio. E pessoal, nossos sintomas e repetições são a confirmação de que podemos enganar qualquer um, menos a nós mesmos.
Raskólnikov não sentia culpa apenas porque quebrou uma lei externa, mas porque traiu seus próprios valores – Olha o Superego aí gente!!!! – Então entra o nosso juiz interno (no caso, o dele) que só falta instalar um tribunal triplex na cabeça. O superego não só cobra, ele tripudia. Ele faz você acordar às três da manhã lembrando daquela vez em que disse “obrigado, igualmente” quando o garçom desejou boa viagem. Ou quando você disse “Parabéns!!!” em um funeral, para o filho da pessoa que morreu – Minha mãe fez isso adolescente, e contava isso com mais de 60 anos como se houvesse acontecido ontem.
Agora, multiplique isso por um assassinato.
Curiosamente no Brasil, assistimos a esse mesmo fenômeno em escala pública. Quantos escândalos de corrupção terminaram com os envolvidos adoecendo, ficando paranoicos ou entregando tudo em delações premiadas? A culpa faz adoecer, faz delirar, faz gente poderosa chorar no banho. E aí pode até ter um gostinho de vingança… mas isso é tema para outro texto.
A Reparação – Existe Redenção ou é papo?
E aí vem a pergunta de um milhão de rublos: tem como consertar o estrago?
No livro, Raskólnikov só encontra alívio ao confessar e aceitar o castigo. Mas será que isso resolve tudo?
O que vejo na clínica é que a culpa não costuma sumir com autopunição. A reparação não é sobre pagar pelo erro, e sim sobre construir sobre escombros existenciais. O problema é que reparar o dano emocional é um pouco mais complicado do que consertar um automóvel batido. Dinheiro pode cobrir prejuízos, mas não refaz o tempo perdido, a confiança quebrada, o amor que se esfarelou.
No meu ofício, nunca vi alguém receber uma indenização e dizer: “Nossa, que maravilha, adorei essa tragédia na minha vida!” ou, “Se não fosse essa tragédia eu não teria reformado meu apartamento, que bom!”. O que as pessoas querem mesmo é que o erro nunca tenha acontecido – É um paradoxo onde regredimos e encaramos a nossa ferida narcísica – Pois na realidade, meus amigos, a reparação tem dois lados: o de quem cometeu o ato e o de quem sofreu com ele. Cada um vai lidar com a realidade de uma forma, e o segundo, raramente sai satisfeito da festa.
Dostoiévski dá uma pista sobre isso ao mostrar que Raskólnikov não se liberta apenas confessando, mas ao se conectar com outra pessoa — Sonya, que o acolhe e o humaniza. Reparação, portanto, não é um botão de reset, mas uma tentativa de dar um significado ao erro ou, elaborar um novo significado para o erro. Não dá para apagar o passado, mas dá para decidir o que fazer com ele.
“Não é sobre o que fizeram de mim, e sim o que eu faço do que foi feito de mim” Antes que atirem a primeira pedra na frase coaching, ela é do filósofo francês Jean-Paul Sartre, um dos principais nomes do existencialismo. Ela sintetiza a ideia central de sua filosofia: a liberdade humana de se reinventar, mesmo diante das circunstâncias impostas pela vida, pela história e principalmente, pelos outros (que segundo o próprio Sartre, eram O Inferno)
A frase reflete o pensamento de Sartre sobre a responsabilidade individual e a autonomia, temas determinantes quando nos deitamos no divã e permitimos que nosso inconsciente se expresse. Nesse momento de profunda conexão interna, dentro das temidas penitenciárias que criamos dentro das nossas mentes, reconhecemos que embora sejamos moldados por fatores externos – família, sociedade, experiências boas e ruins – nossas existências são, no fim do dia, definidas pelas escolhas que fazemos a partir disso. Assim, as marcas que deixamos em nós e nos outros, assim como as marcas que permitimos que nos sejam feitas, também são em algum lugar, de alguma forma, nossa responsabilidade.
Agora, fica o alerta: Aqui estamos falando de marcas do inconsciente, de experiências subjetivas, de emoções e o que fazemos delas. Nas ações do dia a dia, a culpa NUNCA é da vítima!
E uma curiosidade:
A ideia de que “a existência precede a essência” também tem presença na obra de Simone de Beauvoir (que compartilhou com Sartre as ideias e boa parte da vida), e tão bem discute como a identidade é construída, mas não determinada irrevogavelmente.
Dois Mestres da Culpa
Freud adorava Dostoiévski e via em Crime e Castigo uma obra-prima da culpa inconsciente.
Segundo ele, a mente humana se move entre desejos proibidos e o medo de punição. É um jogo entre: quanto mais eu desejo, menos eu posso e vice versa.
Raskólnikov não sofre apenas pelo crime cometido, mas porque ousou se colocar acima da sua própria moral. Ele queria ser um “grande homem”, alguém além do bem e do mal, e sua punição não vem da polícia, mas do próprio inconsciente, que não engole essa ideia de impunidade.
Se isso soa familiar, é porque a nossa sociedade está cheia de pequenos Raskólnikovs. Pessoas que se convencem de que o que fazem é justificável, que manipulam narrativas para parecerem heróis quando, na verdade, estão tentando escapar da própria consciência. Desde CEOs que destroem o meio ambiente “em nome do progresso” até líderes políticos que justificam barbaridades com discursos grandiosos.
Coisa de 15 anos atrás foi realizada uma pesquisa (se eu encontrar, eu prometo que compartilho) com grandes mentes criminosas, chefes de quadrilhas internacionais, da máfia e de outras grandes organizações do crime. Em algum momento do discurso de 100% dos entrevistados (homens e mulheres de idades e culturas variadas), aparecia a afirmação: “Eu queria ajudar e ou proteger minha família e meus amigos”
Ou seja, somos movidos por afetos, pelo que nos atravessa em essência, e ainda assim, podemos meter os pés pelas mãos.
Portanto, no fim, a culpa cobra sua conta. E para o inconsciente, talvez não exista o “Hakuna Matata”.
Quando Todos Carregam um Pedaço do Problema
E quando a culpa não é só de um indivíduo, mas de uma sociedade inteira?
O Brasil, por exemplo, tem questões históricas que ainda ressoam — escravização, desigualdade, violência estrutural contra mulheres e corpos divergentes. Como lidar com uma culpa que não foi “nossa” no sentido individual, mas da nossa coletividade?
Dostoiévski já cutucava essa ferida na Rússia do século XIX, expondo as injustiças que criavam figuras como Raskólnikov. No fundo, ele era vítima do próprio sistema que tentava desafiar, vítima de sua própria história.
E nós, hoje, o que nos leva a sentir culpa individual ou coletiva? Ela nos move, nos paralisa, qual a razão da culpa?
E, por fim, aquelas questões existenciais para quando vocês acordarem no meio da madrugada:
Será que eu já reparei alguma ação que fiz? Será que já permite que algo que me foi feito, fosse reparado?
Se o meu passado não pode ser mudado, o que posso fazer com ele a partir de agora?
Análise queridxs, análise.