
Do Recalque ao Fragmento, ou da Sociedade Neurótica à Sociedade Pré-Psicótica.
Imagine que você está diante de uma vitrine que reflete sua imagem. Agora, pense que essa vitrine é uma tela de celular. O reflexo que você vê ali é seu, mas não é exatamente você — ele é filtrado, ajustado, polido por algoritmos e pelo desejo de ser algo mais ou alguém diferente.
Essa brincadeira pode ajudar na compreensão de uma das transformações mais profundas do nosso tempo: a passagem de uma sociedade essencialmente neurótica para uma sociedade pré-psicótica.
Sociedade Neurótica?
Freud viveu, teorizou e escreveu em uma época em que os principais conflitos humanos eram moldados pelo confronto entre seus desejos e as regras da sociedade. A psicanálise surge como uma possibilidade de enfrentamento ao sofrimento que esse confronto gerava. Resumindo bastante, uma sociedade neurótica é aquela em que as pessoas internalizam normas e proibições, criando uma linha tensional entre o “eu” (o Id) e as normas estabelecidas pela “sociedade” e sua moral (o Superego). Claro, entre estes dois há o nosso querido e grande mediador, O Ego
Basicamente Freud olha para aquilo que nos castra, que nos limita, mas que também nos dá contorno, amparo. Quando as pessoas insistem em dizer que Freud só falava sobre sexo, o que na verdade isso quer dizer é que ele foi de encontro ao maior representante da castraçao naquela época.
Esses conflitos entre o tudo quero e o que realmente posso, geram sintomas típicos: ansiedades, fobias, compulsões. A sociedade neurótica é estruturada em torno da repressão e do recalque. Tudo aquilo que não pode ser vivido é empurrado para o inconsciente, de onde retorna em formas criativas entre sonhos e sintomas.
Basicamente se alguém daqui para frente te chamar de neurótico ou neurótica, agradeça, pois essa é uma forma absolutamente saudável de existir.
Sociedade Pré-psicótica?
Hoje, em nossa clínica psicanalítica, muitos psicanalistas observam uma mudança radical nos sofrimentos e formas subjetivas.
Estamos saindo de uma sociedade marcada pela repressão e entrando em uma era onde predominam a fragmentação, o excesso e a hiperexposição.
Calma! Respire, está tudo bem!
Na sociedade pré-psicótica, as estruturas que antes, com ou sem sofrimento, organizavam o mundo — normas sociais, relações estatizadas, a própria noção e busca de uma “verdade” — estão em colapso ou estão em constante alteração.
Diferente da neurose, onde os conflitos são marcados por repressão e culpa, o conflito pré-psicótico se apresenta na experiência do vazio, de uma falta de contornos do “eu”. É como se as pessoas vivessem à beira de um colapso psíquico, onde a questão central não é “o que posso ou não posso ter?”, mas “afinal, quem sou eu?” “O que me define?” “O que me regula?”
Um dado interessante é que na década dos 1970, os consultórios de psicanálise estavam cheios de pessoas angustiadas por ter muito. Hoje, os nossos consultórios estão repletos de pessoas angustiadas por não ter, e pelo fantasma de que “Só eu não tenho”.
Os Espelhos que Deformam
O termo pré-psicótico se refere a uma condição em que as fronteiras entre o “eu” e o “outro” começam a se desfazer. Diferente da neurose, onde há um conflito interno, na pré-psicose há uma fragilidade na estruturação do próprio sujeito. Basicamente, o conflito vai construir, destruir, voltar a construir…. O terreno da pré-psicose é arenoso que dificulta, quando não impossibilita a construção. A pessoa pode ter dificuldade em distinguir o que é real do que é imaginário, ou em manter uma identidade sólida.
Que fique claro: Isso não significa que todos estejam desenvolvendo psicoses, mas que as condições culturais e tecnológicas atuais estão criando um ambiente que fragiliza a construção do “eu”.
O caminhar para uma sociedade pré-psicótica tem relação direta com o crescimento do digital. Redes sociais, filtros de imagem, curtidas e compartilhamentos criaram um novo tipo de subjetividade. Neste caso, a identidade não seria algo que construímos internamente, mas algo que projetamos e recebemos de volta em “pedaços”.
A maneira com que lidamos e somos provocados pelas redes sociais geram um alerta: A maneira de ser e estar atual não só intensifica o narcisismo, mas também desorganiza a nossa experiência subjetiva. O “eu” passa a ser definido não pelo que realmente somos, mas pela imagem que conseguimos construir e vender para o outro. A validação externa passa a ser o bem mais preciso, e por ela, vale tudo! Até um “esgotamento subjetivo”.
A PhD em psicologia da personalidade e fundadora do Instituto da Tecnologia e Self do MIT, Sherry Turkle, em seus estudos sobre a relação entre tecnologia e subjetividade, descreve o fenômeno como uma “vida em performance”. Passamos tanto tempo projetando identidades online que, eventualmente, esquecemos quem somos fora das telas. Isso pode levar a experiências de alienação, ansiedade e sentimentos de vazio.
Indico fortemente o vídeo palestra dela para o TED Talk: Conectados, mas sozinhos?
Cancelados?
Em uma sociedade pré-psicótica, os laços sociais são cada vez mais frágeis. As relações tendem a ser descartáveis, como mensagens que podem ser apagadas com um clique. Essa fluidez, embora traga liberdade, também gera um sentimento de desamparo. Sem uma base sólida para construir nossas identidades, somos constantemente “jogados” em novas performances, novas relações e novas demandas.
Um sentimento poderoso que hoje aparece com frequência na clínica é o medo do cancelamento. Definido como um lugar onde não haverá mais possibilidades, algo que expõe com a força de uma nudez ao mesmo tempo que invisibiliza mortalmente.
Eu pergunto: Será que isso é mesmo possível?
Será que existe uma sala onde todas as pessoas canceladas se encontram agora amarradas e amordaçadas pelo senso comum?
Quando Zygmunt Bauman cunhou o termo “modernidade líquida” para descrever esse mundo de relações instáveis, onde ao invés de construir laços profundos, montamos dinâmicas de conexões superficiais e efêmeras, que alimentam o sentimento de vazio e fragmentação. Ou seja, a cena temida do cancelamento é quem nos impede o movimento de vida, e não a possibilidade do cancelamento em si.
E aqui eu vou trazer uma verdade, atenção: Se o seu trabalho não é especificamente de reputação online, relaxe, a possibilidade de você ser uma vítima eterna de um cancelamento é bem pequena.
Agora, assim como é importante se vestir de acordo com a ocasião, você não vai de biquíni para um concerto de ópera, também é saudável cuidar de sua reputação digital.
Recomendo para se informarem mais sobre esta reputação específica, procurar pelos perfis de Cíndia Moraca, ela fala com muito conteúdo sobre o tema.
Para onde vamos?
O conceito de uma sociedade pré-psicótica não é um “diagnóstico”, mas uma tentativa de compreender os desafios do nosso tempo. Se a sociedade neurótica nos convidava a lidar com nossos desejos reprimidos, a sociedade pré-psicótica nos desafia a encontrar contornos, a reconstruir laços e a recuperar um senso de interioridade e pertencimento em um mundo que nos puxa constantemente para fora de nós mesmos.
Diante desse cenário, é importante refletir sobre como estamos nos relacionando com a tecnologia, com nós mesmos e com os outros. Com isso, pensei em algumas reflexões:
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Resgate do contato real: O quanto priorizamos conversas face a face e momentos de desconexão digital? O quanto permitimos que estas conversas se tornem profundas e criem laços?
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Prática da introspecção: O quanto reservamos um tempo para refletir sobre quem somos, sem a influência das redes sociais ou a opinião de outras pessoas?
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Estabelecendo limites: Conseguimos definir horários para o uso de telas e redes sociais, criando espaços de silêncio e calma?
É muito importante ressaltar que a psicanálise é uma ferramenta determinante no enfrentamento desse cenário. Ao buscar autoconhecimento e construir um “eu” mais coeso, podemos resistir à pressão de nos fragmentarmos em pedaços digitais. Mais do que nunca, precisamos olhar para dentro para enfrentar o caos do lado de fora.
Finalizando, este momento social é reflexo das mudanças culturais e tecnológicas que vivemos. Enquanto a neurose nos colocava em conflito com as normas sociais, a pré-psicose nos desafia a manter uma identidade sólida em um mundo de estímulos constantes e relações capturadas pela fluidez. Cabe a nós encontrar um equilíbrio entre o digital e o real, para que possamos continuar construindo um “eu” autêntico e saudável.
E você? Já se perguntou quem é quando ninguém está olhando?